quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sobre a paz de ter-se e só.

Ele parou na porta do nosso quarto e disse: "Estou indo embora".
Nem tirei os olhos do romance.
Entendi perfeitamente o que ele disse mas não tirei os olhos da droga do livro. Nem me mexi.
Não consegui me mover. Não chorei também, não naquela hora. Apenas recebi aquilo como uma flecha no peito e senti o sangue todo do corpo correr diretamente para o coração que inflou como um balão de gás prestes a estourar. Nos segundos seguintes os lábios quiseram se mover, trêmulos, mas só fizeram desenhar na face uma espécie de apatia desesperada. Choque total!

Perguntei pra mim mesmo "e agora?" Se tivesse perguntado isso a ele talvez tivesse uma resposta que não gostaria mesmo de ouvir, por isso a pergunta foi pra mim mesmo.

Meu pensamento então viajou no trem dos nossos últimos três anos e de dentro do vagão eu vi apenas os vultos pela janela. Era mesmo hora de ir, mas não queria falar, não ali, não naquela hora. Quis esboçar uma expressão de derrota, mas não consegui.

Como já disse fiquei ali parada. Nem me mexi.

"Lúcia?" disse ele buscando minha atenção.

Respondi com um aceno breve, engoli em seco algo que provavelmente seria um insulto, respirei fundo e olhei de novo para baixo.

Ele enfim falou alguma outra coisa. Não entendi, pois não prestava atenção no que ele dizia. Por quê? Ora, eu tentava entender o que estava acontecendo dentro de mim, eu estava pensando em mim de novo. Estava sendo a porcaria da egoísta que ele tanto odiava. Afinal de contas era como se toda a minha alma estivesse sendo sugada por alguma mangueira invisível que a despejava no ar. Era a minha alma, porra!! Flutuei pelo quarto, juro que vi as tardes de sol com nos dois cansados pelo quarto fumando cigarros e fazendo os "joguinhos" de toda natureza. Flutuando pude ver nos olhos dele a decepção em sua forma bruta. Seus olhos diziam que ele não mais me daria chances de me redimir. Ele não ia cair mais nessa.

Cheguei a sentir no quarto o cheiro do nosso suor que à muito tempo não se manifestava, senti o tal cheiro pois sentia falta de tudo isso, ele não, não mais, e a culpa de tudo isso, claro, é minha só minha e de mais ninguém.

Finalmente reagi olhei em sua direção, deixei o livro de lado e levantei da cama. Tentei me aproximar dele com um abraço e não me surpreendi quando ele se afastou e pois as duas mãos nos meus ombros. Tente dizer que aquilo tudo ia passar e que não conseguiria viver sem ele.

Não adiantou, nem meu choro, nem as palavras nem tentar persuadi-lo a ficar. Ele se recusava a ouvir. Me exaltei bastante, as lágrimas agora vieram em torrente e senti todos os meus músculos estremecerem involuntariamente.
Percebi sua revolta, pulsante.
Cuspiu na minha cara todo o discurso da mulher que se preocupa apenas com o próprio umbigo.
Vomitou as traições que relevou, todas, em ordem cronológica.
Continuou a esbravejar incansavelmente todos os argumentos válidos para me abandonar ali naquele apartamento a mercê do tempo e das rugas.

Enquanto sua voz grave reverberava no aposento eu tomei minha decisão.

Não é necessário detalhar a fração de segundo que durou o disparo, não vem ao caso fazer, basta dizer simplesmente que vi diante dos meus olhos a vida do homem que mais amei na vida se esvair lentamente. Estranhamente o cheiro do sangue que escorreu pelo assoalho me trouxe uma mistura alívio e gozo que estão a léguas da culpa e do arrependimento.

Não é preciso dizer que me senti melhor ao saber que ele não ia embora e que involuntariamente iria ficar. Não seria de mais ninguém e ia continuar sendo somente meu enquanto eu quisesse. Isto me pois calma e pensativa. Caminhei lentamente na sua direção e toquei-lhe a face antes rosada e agora quase sem vida. Não me despedi pois não se fez necessário, afinal estaremos juntos durante toda a eternidade, e disso eu tinha absoluta certeza, sua alma me pertencia agora como pertenceu também em vida e o seu destino não poderia ser escrito de outra maneira senão esta a qual apenas tornei possível.

Coloquei a arma de volta na gaveta do criado mudo e apanhei novamente o grosso volume. Continuei a leitura saboreando lentamente cada parágrafo de tragédia, amor, angústia e dor.

3 comentários:

taty. disse...

até certo ponto fatal você podia ter escrito sobre mim, lira. to assustada.

Maria do Relento disse...

A paz da dispersão veio muuito da falta de atenção dela no que ele sentia, e a decisão mesmo egoísta foi tão terna. É bem como ver uma briga sem o áudio. Sabe?
Gostei muito do conto, muito!

Anônimo disse...

Vixe! Mas, muito bom conto.

Parabéns!