quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Rotina

Ela viu os bancos se encherem assim que entrou no vagão. Até aqueles de cor cinza, que uma voz metalizada sempre pede pra não usar. Sacou da bolsa azul o romance, que empacou no primeiro capítulo, e sentiu o cheiro cru e quente costumeiro.

Ele correu escada abaixo apressado, e ao colocar na porta o molho de chaves atado a um chaveiro de plástico grudento lembrou do isqueiro que deixou do lado do pente velho de madeira: pensou que aquilo seria seu martírio, pois não há no mundo coisa mais penosa que um cigarro apagado nas mãos de um neurótico.

Na entrada do prédio ela deslizou sobre o linóleo ainda úmido, sorriu e abanou rapidamente a mão para Josimar que retribuiu o aceno expondo a falta que lhe faz um canino. Sacolejou a bolsa pelas pontas a cata do crachá com a foto esbranquiçada (cara de louca, olhos esbugalhados).

Ainda mordendo o risóle ele aguarda o elevador, distribui sua cara de sono a quem quer que apareça em sua frente e ainda pensa em parar com tudo e viver pegando onda em Ubatuba.

Ela não sabe dele, ele não sabe dela. Nunca vão se conhecer e se por acaso um dia se cruzarem por ai não vai deixar de ser mais do que um esbarrão no centro da cidade.

3 comentários:

Flávia disse...

Esse texto veio de encontro ao meu estado de espírito nessa noite quente de quinta-feira, mesmo sem linóleo, risole ou Josimar sem caninos. Penso naquelas pessoas que jamais deveriam ter ganho importância maior que a de um esbarrão banal em uma dessas esquinas distraídas da vida...

Preciso ser mais distraída. Preciso?

Beijos.

Petê Rissatti disse...

É o espírito paulistano já entranhado no nosso menino-cinéfilo. E concordo com a Flávia: ao mesmo tempo que perdemos de encontrar pessoas ótimas, encontramos pessoas que podiam ter ficado no seu limbo, né?
Abração

Anônimo disse...

Solitário e triste... Mas sinto um desejo de esperança no meio, e uma incerteza no fim. Que bom.
Gostei das suas palavras ... ;)

Beijo's